Crianças, abrigos e famĂ­lias: como o STJ enxerga o acolhimento institucional

Por Redação em 19/09/2021 às 07:31:45

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 1Âș, preconiza a doutrina da proteção integral e impõe a observância do melhor interesse do menor. Esse princĂ­pio, que orienta tanto o legislador quanto o aplicador da lei, estabelece a primazia das necessidades infanto-juvenis como critério de interpretação da norma jurĂ­dica, ou mesmo como forma de elaboração de polĂ­ticas e solução de futuras demandas.

Segundo a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, nas ações que envolvem interesse da infância e da juventude, não são os direitos dos pais ou responsĂĄveis que devem ser observados. "É a criança que deve ter assegurado o direito de ser cuidada pelos pais ou, ainda, quando esses não manifestam interesse ou condições para tanto, pela famĂ­lia substituta, tudo conforme balizas definidas no artigo 227 da Constituição Federal, que seguem estabelecidas nos artigos 3Âș, 4Âș e 5Âș do ECA", afirmou.

A jurisprudĂȘncia do tribunal se fundou tanto na doutrina da proteção integral como no princĂ­pio do melhor interesse de forma ampla, tendo como norte a prioridade absoluta à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, protegendo-os ora de mudanças abruptas em sua rotina e condições de vida, ora de situações de violĂȘncia – como destacou o ministro Marco Buzzi.

CompetĂȘncia para julgar medidas protetivas

Em recente julgado, a Segunda Seção estabeleceu a competĂȘncia do juĂ­zo da localidade onde uma adolescente se encontrava – e não o do domicĂ­lio de sua guardiã legal – para examinar medidas protetivas propostas pelo Ministério PĂșblico estadual.

A menor estava sob a guarda legal de uma mulher, em uma cidade do ParanĂĄ, desde a morte de sua mãe biológica, quando tinha quatro meses de idade. Devido à denĂșncia de violĂȘncia fĂ­sica e psicológica por parte da guardiã, o Ministério PĂșblico estadual ajuizou medida protetiva em favor da adolescente, tendo o juĂ­zo da localidade determinado o acolhimento emergencial em abrigo municipal.

Em menos de um mĂȘs, a adolescente fugiu e se abrigou com parentes biológicos maternos residentes no Rio Grande do Sul – o que levou o juĂ­zo do ParanĂĄ a declinar da competĂȘncia para julgar a medida protetiva. O juĂ­zo da cidade gaĂșcha, por sua vez, suscitou o conflito de competĂȘncia perante o STJ, ao argumento de que o artigo 147, incisos I e II, do ECA estabelece que o foro competente para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias legais é determinado pelo domicĂ­lio dos pais ou responsĂĄveis.

O relator, ministro Marco Buzzi, lembrou que a orientação pacĂ­fica do colegiado é no sentido de que, em se tratando de questionamentos acerca da guarda, prevalecerĂĄ a competĂȘncia do foro da comarca daquele que detém a guarda legal da criança ou do adolescente (SĂșmula 383).

No entanto, o ministro observou que o caso dizia respeito à competĂȘncia para julgar medida protetiva em favor de adolescente em situação de risco, e não à discussão sobre guarda legal. O magistrado destacou que, em situações semelhantes, o tribunal considerou mais adequada a declaração de competĂȘncia do juĂ­zo do local onde se encontrava o menor, uma vez que, pela proximidade, seria possĂ­vel atender de maneira mais eficaz aos objetivos do ECA, bem como entregar a prestação jurisdicional de forma rĂĄpida e efetiva.

"Na resolução de conflitos que versam sobre o atendimento das necessidades de crianças e adolescentes, o norte hermenĂȘutico deve ser sempre o interesse do menor", afirmou o relator. Segundo ele, tendo em vista esse princĂ­pio e ainda o princĂ­pio do juĂ­zo imediato (artigo 147 do ECA), a fixação da competĂȘncia no juĂ­zo que tem a possibilidade de interação mais próxima com o menor e seus responsĂĄveis viabiliza a concretização dos objetivos traçados na lei.

Ação de afastamento familiar e ação de guarda

Em 2020, a Terceira Turma definiu: mesmo que a sentença em ação de afastamento de convĂ­vio familiar transite em julgado, com a determinação de acolhimento institucional do menor, é possĂ­vel o ajuizamento de ação de guarda por quem pretende reavĂȘ-la.

O colegiado deu provimento ao recurso de um casal para determinar o prosseguimento da ação de guarda ajuizada em abril de 2018, na qual pretendiam reaver a guarda que exerciam irregularmente sobre uma criança no perĂ­odo de 2014 a 2016 – quando o Ministério PĂșblico obteve tutela antecipatória em ação de afastamento de convĂ­vio familiar para o acolhimento institucional da menor.

A ação de guarda foi extinta. O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que o casal careceria de interesse processual, na modalidade utilidade, para rediscutir as mesmas questões que jĂĄ haviam sido objeto de decisão na ação de afastamento.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que as ações de guarda e de afastamento do convĂ­vio familiar tĂȘm pretensões ambivalentes: na primeira, pretende-se exercer o direito de proteção da pessoa dos filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou de quem, em situação de risco, demande cuidados especiais (guarda sob a ótica assistencial); na segunda, pretende-se a cessação ou a modificação da guarda em razão de risco para a pessoa que deve ser preservada.

A ministra verificou que a sentença de mérito da ação de afastamento de convĂ­vio familiar foi proferida em 2016 (quando a menor tinha menos de dois anos, logo após o seu albergamento provisório) e considerou desnecessĂĄria, naquele momento, a produção de provas sobre as circunstâncias da entrega da criança e da tentativa de adoção à brasileira.

Entretanto, afirmou, tendo sido a ação de guarda ajuizada após um tempo considerĂĄvel, em 2018, e com base em causas de pedir distintas e em possĂ­veis modificações fĂĄticas, "é absolutamente inadequado, diante desse novo possĂ­vel cenĂĄrio, opor a coisa julgada que se formou na ação de afastamento do convĂ­vio familiar aos recorrentes, que tĂȘm o direito de ver as novas questões por eles suscitadas examinadas em seu mérito na ação de guarda".

Segundo a relatora, quanto ao entendimento da sentença que julgou procedente o pedido de afastamento do convĂ­vio familiar, de que seria juridicamente impossĂ­vel reconhecer a filiação socioafetiva que tenha em sua origem uma adoção à brasileira, não hĂĄ impedimento para que a questão seja examinada na ação de guarda. Por mais relevantes que sejam os motivos da decisão – destacou Nancy Andrighi –, estes não fazem coisa julgada, como expressamente estabelece o artigo 504, I, do Código de Processo Civil.

Adoção à brasileira, um problema frequente

Um dos temas mais sensĂ­veis e frequentes que chegam ao STJ, envolvendo crianças e adolescentes, é a adoção à brasileira. As turmas de direito privado que compõem a Segunda Seção adotam o entendimento de que, salvo evidente risco à integridade fĂ­sica ou psĂ­quica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional, devendo ser prestigiada, sempre que possĂ­vel, a sua manutenção em um ambiente de natureza familiar, desde que este se mostre confiĂĄvel e seguro, capaz de recebĂȘ-lo com conforto, zelo e afeto.

Leia também: Julgados sobre adoção à brasileira buscam preservar o melhor interesse da criança

Em agosto de 2020, a Quarta Turma confirmou liminar e concedeu habeas corpus para revogar a decisão que, no curso da ação de nulidade do registro civil de um bebĂȘ de um ano e seis meses, determinou o seu acolhimento institucional. O colegiado entendeu que, mesmo havendo fortes indĂ­cios de irregularidades na adoção, inclusive com suspeita de pagamento, a transferĂȘncia para um abrigo não seria a solução mais recomendada; por isso, permitiu a permanĂȘncia da criança com a famĂ­lia adotiva até a conclusão da ação de nulidade do registro.

De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora, deveria prevalecer no caso o princĂ­pio do melhor interesse do menor, que conviveu desde o nascimento com a mãe registral.

A ministra relatou que a criança foi entregue de forma irregular para a mãe registral logo após o parto. A decisão de acolhimento institucional foi proferida quando ela contava com oito meses de vida. Por força de liminar deferida pela PresidĂȘncia do STJ, o menor voltou ao convĂ­vio da famĂ­lia registral, após ter passado poucos dias no abrigo.

Segundo a ministra Gallotti, a mãe registral e sua companheira estavam inscritas no Cadastro Nacional de Adoção, e não havia menção de risco algum à integridade fĂ­sica e psicológica do menor. Além disso, estava comprovado no processo que a mãe biológica era uma adolescente usuĂĄria de drogas que não tinha condições nem interesse na criação do filho.

Laços socioafetivos não consolidados

Em situações excepcionais, no entanto, quando os laços socioafetivos ainda não se consolidaram, e sendo a adoção irregular, a jurisprudĂȘncia recomenda o acolhimento institucional, tanto para evitar o estreitamento do vĂ­nculo afetivo quanto para resguardar a aplicação da lei. Nesse sentido, a Terceira Turma negou provimento ao recurso em habeas corpus interposto por uma mulher acusada de praticar adoção à brasileira, no qual pedia a guarda da criança.

De acordo com o processo, a mãe biológica do menor foi convencida a deixĂĄ-lo aos cuidados da filha da idosa para quem trabalhava, até resolver problemas financeiros. Algum tempo depois, foi demitida por mensagem de aplicativo e não teve o filho de volta.

A filha da idosa ajuizou ação para adotar a criança, mas o juĂ­zo de primeiro grau rejeitou o pedido por reconhecer que ela agiu de mĂĄ-fé, aproveitando-se das dificuldades financeiras da mãe biológica para obter a guarda de fato. Na tentativa de evitar o recolhimento a uma instituição, a guardiã ajuizou habeas corpus no tribunal estadual, o qual foi denegado.

Para o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso no STJ, as conclusões da Justiça de primeiro e segundo graus deixam clara a necessidade de afastar a criança dos cuidados da mulher que tentou praticar a adoção irregular. O ministro também ponderou que o imediato acolhimento do menor em abrigo, na cidade onde residia sua mãe, poderia oferecer a proteção integral e viabilizar a reaproximação gradativa dos dois.

Cuidado maior ainda na? pandemia

A pandemia de Covid-19 adicionou um novo componente aos casos de adoção ou acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Ao julgar um pedido de habeas corpus, a Terceira Turma concluiu que a ameaça da doença era mais uma razão para manter a criança com a famĂ­lia que cuidava dela desde o nascimento – pelo menos até a conclusão do processo de adoção.

Dessa forma, o colegiado concedeu o habeas corpus para permitir à famĂ­lia substituta acolher novamente o menor, que havia sido internado em abrigo após decisão judicial fundamentada na tese de que o casal buscava burlar o procedimento de adoção legalmente previsto, incorrendo na prĂĄtica de adoção à brasileira.

A famĂ­lia substituta alegou não se tratar de adoção à brasileira, tendo em vista as suas tentativas de regularizar a adoção do menor. E apontou a fragilidade pulmonar da criança, o que a tornaria mais vulnerĂĄvel diante dos riscos de contaminação pelo novo coronavĂ­rus caso permanecesse em abrigo. Ao STJ, pediram a manutenção da criança na famĂ­lia até o julgamento final de todas as ações judiciais relacionadas ao caso.

O relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a convivĂȘncia familiar é direito fundamental das crianças e adolescentes, previsto pela Constituição de 1988, sendo que "a afetividade, no âmago familiar, é tão ou mais importante do que a consanguinidade".

Ele considerou ainda que, em virtude da pandemia de Covid-19, é preferĂ­vel manter a criança em uma famĂ­lia que a deseja como membro do que em um abrigo. Além disso, chamou atenção para as dificuldades que envolvem o procedimento de adoção no Brasil, que é "burocrĂĄtico e demorado".

Em seu voto, Cueva afirmou que o papel do JudiciĂĄrio é aferir, a cada caso, como se realizarĂĄ o bem-estar de crianças e adolescentes entregues por familiares, informalmente, aos cuidados de padrinhos ou terceiros interessados em exercer o poder familiar – o que, notoriamente, burla o cadastro e pode estimular prĂĄticas dissimuladas e criminosas, a exemplo da conduta tipificada no artigo 242 do Código Penal.

"O destino dessas crianças acaba sendo definido a cada julgamento, a partir de premissas fĂĄticas e da sensibilidade do magistrado", declarou.

Indenização após fracasso da adoção

Em maio de 2021, a Terceira Turma reconheceu a uma mulher o direito de ser indenizada em R$ 5 mil pelo casal que a adotou ainda na infância e depois, quando ela jĂĄ estava na adolescĂȘncia, desistiu de levar adiante a adoção e praticou atos que acabaram resultando na destituição do poder familiar.

Para o colegiado, apesar de não se descartar a falha do Estado no processo de concessão e acompanhamento da adoção, não é possĂ­vel afastar a responsabilidade civil dos pais adotivos, os quais criaram uma situação propĂ­cia à propositura da ação de destituição do poder familiar pelo Ministério PĂșblico, cuja consequĂȘncia foi o retorno da jovem, então com 14 anos, ao acolhimento institucional.

"O filho decorrente da adoção não é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar a existĂȘncia de vĂ­cios ocultos", apontou a ministra Nancy Andrighi, no voto que foi seguido pela maioria da turma.

A criança – que jĂĄ vinha de destituição familiar anterior – foi adotada aos nove anos de idade, após longo perĂ­odo em acolhimento institucional, por um casal com 55 e 85 anos. A convivĂȘncia na nova famĂ­lia foi marcada por conflitos.

Apesar de ressaltar a importância do trabalho das instituições estatais no sistema de adoção, como o Ministério PĂșblico, a ministra apontou que, no caso dos autos, era perceptĂ­vel a inaptidão dos adotantes – quadro que, no entanto, só foi reconhecido após a conclusão da adoção. Caso não tivessem ocorrido falhas estatais sucessivas, ponderou, a criança certamente não seria encaminhada a uma famĂ­lia imprópria para recebĂȘ-la.



Fonte: STJ

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