Por maioria de votos, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que é possĂvel ao juiz condenar o réu ainda que o Ministério PĂșblico (MP) peça absolvição nas alegações finais. De acordo com o colegiado, essa disposição – prevista expressamente no artigo 385 do Código de Processo Penal (CPP) – não foi tacitamente derrogada pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).
Com base nesse entendimento, a turma negou provimento ao recurso especial interposto por um promotor e manteve a decisão do Tribunal de Justiça do ParĂĄ (TJPA) que o condenou pelo crime de concussão.
Na origem do caso, a suposta conduta criminosa foi analisada em processo disciplinar conduzido pelo Conselho Nacional do Ministério PĂșblico (CNMP), no qual houve indicação para condenação no âmbito administrativo. As provas apresentadas no processo administrativo – prints de conversas com a possĂvel vĂtima por aplicativo de mensagens, fornecidos pelo próprio acusado – foram corroboradas por outras, produzidas na fase judicial, o que levou o TJPA a condenar o agente pĂșblico.
A decisão da corte estadual, no entanto, não acolheu o pedido de absolvição feito em alegações finais pelo MP, que apontou possĂvel ilicitude das provas.
No recurso ao STJ, o promotor requereu a anulação do julgamento, alegando que as provas utilizadas eram ilegais e que o pedido de absolvição do MP deveria ser acolhido, pois o Pacote Anticrime teria derrogado tacitamente a disposição do CPP que permite ao juiz condenar o réu mesmo contra a posição do órgão ministerial.
Mensagens comprometedoras foram apresentadas pelo réu
O ministro Rogerio Schietti Cruz, cujo voto prevaleceu no julgamento, considerou que os registros de mensagens comprometedoras são provas lĂcitas, pois foram apresentados pelo próprio réu. O magistrado lembrou que ninguém pode ser compelido a produzir prova contra si mesmo, mas nada impede o acusado de se autoincriminar voluntariamente.
"Não hĂĄ falar em violação do artigo 157 do CPP e, por consequĂȘncia, em ilicitude dos prints de WhatsApp usados na fundamentação do acórdão, uma vez que foram apresentados pelo próprio réu – assistido por defesa técnica constituĂda", declarou o ministro.
Schietti acrescentou que o tribunal de origem apresentou elementos suficientes para a caracterização da concussão, incluindo vasta prova oral, que foi produzida ao longo do processo.
Pretensão acusatória permanece mesmo se o MP mudar posicionamento
Ao analisar o artigo 385 do CPP, que dispõe sobre a possibilidade de o juiz condenar o réu mesmo quando o MP pede a absolvição, o ministro afirmou que esse dispositivo "estĂĄ em consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei 13.964/2019, que introduziu o artigo 3Âș-A no Código de Processo Penal".
Schietti salientou que, "ao contrĂĄrio de outros sistemas – em que o Ministério PĂșblico dispõe da ação penal por critérios de discricionariedade –, no processo penal brasileiro o promotor de Justiça não pode abrir mão do dever de conduzir a actio penalis até seu desfecho, quer para a realização da pretensão punitiva, quer para, se for o caso, postular a absolvição do acusado, hipótese que não obriga o juiz natural da causa, consoante disposto no artigo 385 do CPP, a atender ao pleito ministerial".
Para o ministro, a posição dos representantes do MP no curso do processo não elimina o conflito permanente entre o interesse punitivo do Estado e o interesse de proteção à liberdade do acusado: "Mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no inĂcio da persecução penal", concluiu.
Juiz não deve ser mero homologador das pretensões do MP
O ministro observou que o julgador, por força do princĂpio da correlação, deve se vincular aos fatos narrados na denĂșncia, mas não precisa se comprometer com a fundamentação invocada pelas partes. Para Schietti, o juiz deve analisar o mérito da causa, "sem que lhe seja imposto o papel de mero homologador do que lhe foi proposto pelo Parquet".
No mesmo sentido, o ministro explicou que a submissão do magistrado à manifestação do MP, sob o pretexto de supostamente concretizar o princĂpio acusatório, implicaria, na verdade, a sua subversão, "solapando, além da independĂȘncia funcional da magistratura, duas das basilares caracterĂsticas da jurisdição: a indeclinabilidade e a indelegabilidade".
Schietti ressaltou também que a adesão irrestrita à posição do MP comprometeria a fiscalização de seus atos, pois não haveria nenhuma hipótese de controle sobre erros ou eventuais desvios éticos de seu representante, diante da falta de interesse em recorrer da decisão judicial que acolhesse o pedido absolutório – "cenĂĄrio afrontoso aos princĂpios fundantes de qualquer Estado DemocrĂĄtico de Direito".
Por fim, o ministro ponderou que o pedido absolutório do MP em alegações finais eleva o ônus argumentativo do juiz, pois, "uma vez formulado pedido de absolvição pelo dominus litis, caberĂĄ ao julgador, na sentença, apresentar os motivos fĂĄticos e jurĂdicos pelos quais entende ser cabĂvel a condenação e refutar não apenas os fundamentos suscitados pela defesa, mas também aqueles invocados pelo Parquet em suas alegações finais, a fim de demonstrar o equĂvoco da manifestação ministerial".
Fonte: STJ