?Por constatar sérias inconsistĂȘncias e indevidas interferĂȘncias no procedimento de reconhecimento pessoal do suspeito, bem como grave falha na persecução penal, relativamente à produção de provas, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu um homem condenado por roubo e estupro no interior de um ônibus no Rio de Janeiro.
Para a relatora, ministra Laurita Vaz, além das irregularidades no reconhecimento, houve falha na produção de provas. A acusação teria deixado de produzir algumas provas de suma importância que poderiam dirimir o cenĂĄrio de incerteza quanto à autoria dos crimes, comprovando-se a tese acusatória ou até mesmo atestando-se a inocĂȘncia do acusado.
O fato aconteceu em 2018: dois homens armados anunciaram o assalto, ocasião em que subtraĂram vĂĄrios pertences dos passageiros, incluindo o aparelho celular da vĂtima, uma mulher jovem. Em seguida, um dos criminosos teria constrangido a denunciante, mediante grave ameaça de mal fĂsico, a praticar atos libidinosos com ele.
No departamento de polĂcia, ao lhe serem apresentadas as fotos, a vĂtima disse ter ficado em dĂșvida entre dois indivĂduos, momento em que o policial teria alertado que um deles (irmão gĂȘmeo do acusado) jĂĄ estaria preso, influenciando, assim, no reconhecimento feito pela vĂtima.
O juĂzo de primeiro grau condenou o denunciado a 15 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por roubo e estupro. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a sentença.
Reconhecimento foi marcado por inconsistĂȘncias e interferĂȘncias indevidas
A relatora do habeas corpus, ministra Laurita Vaz, acolheu a argumentação da Defensoria PĂșblica do Rio de Janeiro de que a prova era sugestionada. Na fase do inquérito, ao serem apresentadas as fotos dos possĂveis autores do crime, a vĂtima indicou ter ficado na dĂșvida com relação a dois possĂveis suspeitos, irmãos gĂȘmeos, o que levou um policial a informĂĄ-la que uma das pessoas mostradas se encontraria preso, do que decorreu a consequĂȘncia lógica da impossibilidade de ele ser o autor do crime, influenciando, assim, o reconhecimento pela vĂtima do suspeito na outra fotografia.
JĂĄ no âmbito judicial o reconhecimento foi confirmado, mas a ministra apontou que a vĂtima relatou que o agressor teria certas caracterĂsticas fĂsicas, como cavanhaque e uma marca na sobrancelha, caracterĂsticas que não podem ser observadas na foto do réu mostrada pela polĂcia.
Nesse sentido, Laurita Vaz destacou que o reconhecimento de pessoas, embora seja meio de prova aceito pela legislação, deve ser analisado e valorado com cautela, dado que a própria falibilidade humana pode comprometer, mesmo de forma involuntĂĄria, o acerto por parte do sujeito reconhecedor.
"Em que pese a vĂtima tenha confirmado o reconhecimento em juĂzo, nem sequer consta a informação de que novo procedimento foi feito com a observância das formalidades exigidas pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). Ainda que tenha ocorrido a confirmação, não hĂĄ como garantir a fiabilidade da prova, pois uma vez que a testemunha ou a vĂtima reconhece alguém como o autor do delito, hĂĄ tendĂȘncia, por um viés de confirmação, a repetir a mesma resposta em reconhecimentos futuros, pois sua memória estarĂĄ mais ativa e predisposta a tanto", declarou.
Dever estatal não pode ser cumprido da maneira cômoda
Laurita Vaz também ressaltou que houve grave falha na produção de provas. A denĂșncia indica que haveria outros passageiros no veĂculo no momento dos fatos, todos eles, potenciais testemunhas da ação delitiva. No entanto, nenhum dos referidos passageiros, à exceção da vĂtima da violĂȘncia sexual, foi ouvido, seja em juĂzo ou no departamento policial.
A ministra recordou que, durante a investigação, a autoridade policial requisitou à empresa responsĂĄvel pelo ônibus informações sobre a existĂȘncia de imagens do momento dos fatos, tendo a empresa reportado não notar nenhuma ação anormal na gravação durante o intervalo de tempo mencionado pela autoridade, e se prontificado a enviar os arquivos contendo as imagens para os órgãos estatais competentes. Apesar disso, a autoridade policial e o Ministério PĂșblico estadual se mantiveram inertes e não solicitaram as imagens.
Laurita explicou que essa conjuntura processual configura o que a doutrina processualista-penal denomina de perda de uma chance probatória, a qual dispõe que o Estado não pode perder a oportunidade de produzir provas contra o acusado, tirando-lhe a chance de um resultado pautado na certeza ou na incerteza.
"Apesar de os fatos serem gravĂssimos e de ser dever do Estado não incorrer em proteção insuficiente aos bens jurĂdicos merecedores de tutela penal, essa obrigação não pode ser cumprida da maneira mais cômoda, com a prolação de condenações baseadas em prova frĂĄgil, mormente quando possĂvel a produção de elemento probatório que, potencialmente, possa resolver adequadamente o caso penal. É de se concluir, portanto, que a prova produzida não pode lastrear, por si só, o decreto condenatório, impondo-se a absolvição do paciente", concluiu a ministra.